Luz no fim da 'imunidade de rebanho'?

Desde que o governo britânico decidiu usar a estratégia de imunidade de rebanho (e desistiu por que alguém que entende alguma coisa do assunto avisou a eles que isso não era estratégia coisa nenhuma) o assunto tem meio parado no ar. Nas últimas semanas o assunto voltou à baila com a publicação na revista Science de um dos preprints que meio começaram essa discussão há mais de dois meses: Britton et al. 2020, além de Gomes et al. 2020. Pra variar o assunto virou tema de polarização política, e a ciência ficou perdida no meio dos disse-me-disses, então aqui vai um resumo do que isos significa e não significa.

O numero de novas infecções causadas por um indivíduo infectado (\(R_{eff}\)) depende do número de pessoas suscetíveis na população (\(S\)). À medida que a população se infecta, recupera e fica imune esse número diminui naturalmente.

\begin{align} R_{eff} = R_0 \cdot S \end{align}

Quando o número de pessoas suscetíveis é pequeno (a população imune é grande) o suficiente cada infectado transmite o vírus pra somente uma outra pessoa – esse é “o pico”. A partir daí o número de novos casos dimiui e uma hora a epidemia acaba.

A proporção mínima da população que deve ser imune pra que isso aconteça é o limiar de imuniade de rebanho (“herd immunity threshold”, HIT), que é geralmente usado no contexto de vacinação. Na forulação mais básica, a expressão matemática pra esse limiar é:

\begin{align} HIT &= \frac{R_0-1}{R_0} \\ &= 1 - \frac{1}{R_0} \end{align}

Esse valor não é uma definição, é uma consequência da análise da dinâmica de um dos modelos mais básicos de transmissão. Pra um valor de \(R_0 \approx 2.4\) temos \( HIT \approx 60% \) aproximadamente e como não existe vacina pra SARS-CoV-2 só é possível chegar a esse limiar com infecções reais e gente morrendo.

Esse modelo basicão, como todo modelo, tem premissas que permitem a suas construção e análise (o fazem tratável, na linguagem dos matemáticos). Uma dessas premissas é que todo mundo tem contato com todo mundo, todo mundo é igualmente suscetível – ou seja, a população é homogênea. No mundo real algumas pessoas tem mais contatos que outras e/ou são mais suscetíveis que outras – a população é heterogênea. Um modelo menos básico pode descrever isso, e uma das consequências é um pico e um HIT mais baixos (por exemplo os 20-40% que andaram rolando por aí).

Esse é o resumo de alguns artigos recentes: modelo mais realista, HIT mais baixo. A explicação mais simples pra esse fenômeno é que os grupos mais expostos se infectam mais rápido e transmissão diminui mais cedo. Além disso, é importante lembrar que esse limiar é a fração quando a epidemia começa a diminuir, não a fração final infectada. Dependendo das premissas do modelo (olha elas aí de novo, gente) a fração esperada pode bem mais alta, e a mortalidade total também.

Então, com essas ideas tem algumas consequências, por exemplo, o “achatamento da curva” pode ser visto como uma redução no HIT, que reduz o pico e a quantidade total de infectados – essa ideia tá implícita numa matéria recente do The Atlantic. A segunda onda é o “desachatamento da curva”: quando você aumenta o \(R_0\) o HIT aumenta e a incidência volta a aumentar. Num modelo heterogêneo isso também acontece, mas é mais complicado por que não temos só um parâmetro que muda (menor distanciamento, maior transmissão), mas uma rede de contatos complexa, e dependendo de como essa rede se reorgnaiza com o relaxamento a população pode voltar a uma situação parecida à de antes ou não.

Resumindo, descrever uma epidemia é uma tarefa complexa, e o papel do modelo matemático não é representar a realidade completa, mas aspectos úteis do processo. Entender esses aspectos premite prever o impacto de diferentes intervenções. A gente discute essas ideias no episódio 6 do podcast Ministério da Ciência

-- caetano, July 20, 2020